sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ser um filho de desaparecido na Argentina

Nota de Roda Pé / Domingo 18 de abril

A voz dos vencedores calou a todo um povo e junto com ela a história de seus lutadores por longos anos. Boa parte dos fatos da ditadura militar e dos homens e mulheres que deram sua vida por um país melhor virou silêncio de cemitério, algo maldito, ou nos melhores dos casos, mal visto. A única resistência foram a mães da Praça de Maio, consideradas “loucas” na tímida democracia dos anos de 1983.

-Teus país estão viajando.
-E quando eles voltam vó?
-Pronto meu querido, pronto...

Muitos filhos ficaram sem pais e sem respostas. Muitas vezes parentes próximos inventavam mentiras piedosas por não saber o que dizer ou com vergonha por seus netos ou sobrinhos. Uma infância de brincadeiras e ausências.

Cada um deles achava que isso só acontecia com eles, mas não. O terrorismo de estado massacrou na Argentina a 30 mil pessoas. Eles cresceram e as perguntas começaram a quebrar os tijolos da enorme parede. A faculdade, a política, as pessoas, as discussões, os encontros.
Então os murmúrios se fizeram ideias. Criado numa bolha, respirava confundido os jornais, livros, músicas, e então a universidade me recebeu com uma bofetada de realidade. A liberdade, as novas experiências, tudo chegou de uma vez para mim.
Numa classe de filosofia contemporânea me disseram:

-Aquele tá procurando um cara pra rachar um apê.
-Beleza.
-O cara é maneiro.

"Eu tinha esperança de que ele e minha mãe voltassem"
O nome dele é Camilo Cagni, magro, cabelo comprido, preto, liso, fanático por rock argentino. Foi difícil fazê-lo escutar The Doors, mas curtiu muito depois.

Compartilhamos uma quitinete no centro da cidade de La Plata, capital do estado de Buenos Aires e principal centro universitário da região. Um armário no meio separava as camas de um lado e uma mesa redonda com quatro cadeiras velhas e som do outro. Numa noite, com apenas a luz do abajur acesa, me disse: "as única coisa que tenho do meu pai são fotos e essa borracha escrita por ele que diz FAR (Forças Armadas Revolucionárias). Até os doze eu tinha esperança de que ele e minha mãe voltassem".

No geral uma casa de estudantes não amanhecia até o meio-dia, no entanto a nossa era geograficamente e por desgraça bem localizada. Às nove da manhã um carteiro amigo sempre tocava a campanhia para nos acordar pra fazer tempo. De altura média, olhos verdes, cabelo longo encaracolado, voz grave e energética. Assim é Carlos Rios, mais conhecido como Charly. Foi o primeiro a dizer a Hebe de Bonafini, presidente das Mães da Praça de Maio, que os filhos de desaparecidos tinham que ter sua própria organização de direitos humanos. Como todo jovem teve que ouvir a típica resposta: vocês são muitos jovens, os partidos vão manipular vocês. No entanto, para os anos de 1995 as organizações de filhos de desaparecidos já tinham pipocado pelo país inteiro. E assim como outras organizações de direitos humanos os partidos caíram em cima.
Por este motivo, na minha quitinete se faziam reuniões para ver o que se podia ser feito. Naquele momento, La Plata era a referência a nível nacional da organização. E grandes propostas saíram dali.

-Os assassinos dos nossos pais estão livres e contentes.
-É. Eu vi um deles hoje.
-Onde?
-Aqui mesmo.
-Filho da puta!!!!
-Porra!!! Não pode ficar assim.
-E se a gente juntar todo mundo e marcar o lugar onde ele mora?


Foram poucos na primeira, mas o barulho foi enorme. Não dava mais para ser indiferente. "Senhoras, senhores: o teu vizinho é um assassino e torturador." E cantávamos a viva voz: “Assim como aos nazistas lhes aconteceu, onde vais, nós iremos atrás”. H.I.J.O.S (Filhos e Filhas pela Identidade e a Justiça contra o Esquecimento e o Silencio), acordou a muitos e inclusive a mim.

Rodrigo Menitto é jornalista, filho de terras argentinas e brasileiras, estreia sua coluna Crônicas do Sul.

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