quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

100 Anos de Castor: viver, amar e pensar em liberdade!

por Fabio Machado Pinto, de Paris

Em 1908, nascia Simone de Beauvoir, descendente de uma família da nobreza recente, de ricos banqueiros de Verdun - França. Sua mãe uma tradicionalista e seu pai um agnóstico, amante do teatro e da literatura. Sua obra é feita de romances, correspondências, memórias e história do século XX. Começa a escrever alguns ensaios com 14 anos, o que leva a preparar uma licence em letras clássicas e filosofia. Aos 17 anos seu primo Champigneulle lhe apresenta a literatura moderna e a pintura. Seu engajamento na escritura e na pintura foi uma questão de tempo, logo integra a equipe de Robert Garric, onde encontra Merleau-Ponty. Conforme Sallenave (2008), ela quis se fazer a Castor de Guerra desde os 18 anos, estudando, se revendo, se engajando na literatura e querendo aprender sobre tudo. Ela se engajou pela literatura no sentido sartreano de engajamento e neste sentido foi tão radical quanto ele. Nutria uma idéia de revolução, o sentimento de assistir a explosão de um mundo novo. Aos vinte anos foi licenciada em filosofia. Neste período vai ganhar o apelido de Castor dado por René Maheu, amigo de Nizan e Sartre: "os castores andam em bando e tem um espírito construtor."

Em 1929, assume uma relação com Sartre que vai durou toda a vida. Sua relação com Sartre lhe possibilita relações nada convencionais como a que constituiu com Olga-Sartre-Simone, ou a viagens a alemanha, Itália, Grécia, Marrocos. Viagens e aventuras que continuarão como parte da sua escolha existencial, engajados no mundo pela escrita e uma curiosidade sobre a vida e suas contradições, num século particularmente sangrento.

Ela fixou seu destino ao encontrar Sartre. Este destino de mulher que constrói inteiramente a sua existência refutando as convenções. Aos 28 anos voltou a dar aula em Paris no Liceu Molière. Em 1939, quando eclode aquela que parecia ser uma guerra "estranha", se faz resistente no grupo Socialismo e Liberdade. Este fato mudou para sempre a vida dos dois amantes. Simone se engaja politicamente na resistência como no pós-guerra em diferentes frentes. Aos 35 anos publica seu primeiro romance: A Convidada e Sartre dedica L'être et le Neant ao Castor. Em 1945, intensifica sua produção intelectual e publica Le Sang des Autres e Coodirige Temps Modernes que tem como comitê de redação Raymond Aron, Merleau-Ponty, Camus, Albert Ollivier. Em 1947, publica Une Morale de l'ambiguïté e parte para os EUA onde conhece Algren Abraham. Um amor que expressa uma feminilidade convencional e um movimento apaixonado, o que a despeito do público desinformado, não evidencia alguma contradição com a sua principal obra, escrita em 1949: Le deuxième Sexe. Onde encontramos a condição feminina descrita da seguinte forma: "Não se nasce mulher, nos tornamos!" Essa simples frase engendra uma filosofia da ação, conforme Sartre, e denuncia não somente liberdade feminina como a masculina. Ser humano é se inventar de diferentes formas. Esta obra antecedeu em 20 anos o movimento feminista e deu as tintas para se pensar a emancipação da mulher em todas suas frentes. Conforme, escreveu para Algren certa vez: jamais eu sofri por ser uma mulher.

Em 1954, recebe o Goncourt pela publicação de Les Mandarins, e em 1958, publica Mémoires d'une fille rangée, para mim uma de suas melhores obras. Crítica e auto-crítica aos valores e a moral burguesa, vindas de uma mulher que pensou contra si mesma durante toda sua vida, sem deixar de admitir suas origens e seus contornos existenciais. Na visita de Sartre e Simone à Cuba e Brasil, em 1960, não passa despercebido seu desconforto com os casos de seu amante e os cuidados com o corpo que lhe permitissem continuar seu curso.

Era uma mulher que tinha sua historia nas mãos e sabia de suas responsabilidades frente as suas posições e ações. "Eu não tinha mais deus para me amar, mas eu queimaria em milhões de corações." Em 1963 e 1964 apareceram La force des choses Une mort si douce. Este último me tocou profundamente pela sensibilidade como descreve a morte de sua mãe como uma fatalidade inevitável: minha mãe já está na idade de morrer. Enquanto, declara: "alguém, outra que eu, chora dentro de mim!" Os anos 70 intensificaram o engajamento político e o apoio critico aos regimes comunistas. Ela assume com seu amor necessário a direção de La Cause du peuple e publica La Vieillesse. Esta obra é um dos maiores tratados sobre a velhice, uma leitura fundamental para quem pretende estudar esta etapa da vida.

Em 1980, quando da morte de Sartre, Castor contrai uma congestão pulmonar. Como despedida ao velho companheiro publica La cérémonie des adieux onde entrevista Sartre e narra sua vida, principalmente seus últimos anos, sem complacência, detalhando desde sua alegria e força intelectual até sua degeneração física, onde nada ficou escondido. Uma carta de amor desesperado, que fechava uma historia excepcional. Ela sempre soube que: "Se a morte nos separa, minha morte não nos reunirá. É assim! Já foi suficientemente bonito que tenhamos uma vida, assim tão longa, em comunhão". Seus cinco anos finais foram de engajamento político no combate feminista, ao mesmo tempo em que preparava o terreno para sua partida. Foi assim, que adotou Silvie Le Bom. Morre em Paris em 1986 e é enterrada com Sartre. Milhares de pessoas acompanham sua última viagem!

Simone nos deixou obras que nos oferecem a oportunidade de refletir o mundo, a vida das pessoas e suas relações. Uma obra de arte, ao mesmo tempo ferramenta para compreender e transformar o mundo. Ofereceu-nos um campo de possibilidades novo para as relações humanas. Trata-se de uma leitura para homens e mulheres, que buscam se reconhecer nas vidas entrelaçadas de seus romances e memórias. Levaremos séculos para eliminar tanta testosterona que nos injetam diariamente em cada poro do corpo. Não sem todo esforço. Sou daqueles homens que choram ou já choraram por uma mulher; que tem a paixão como uma contingência, mas reconhece no amor uma construção.

Contudo reconheço, que o os sentimentos burgueses nos contaminaram de tal forma que não sabemos distinguir nossos demais perfis daquele que chamamos "amoroso". Também aprendi com eles a idéia de se pensar contra si mesmo. Ser livre não é ser soberano do mundo, mas apenas de sua vida, pois mundo não sustenta soberanos.... não por muito tempo. A contradição, o grupo, acaba sempre por lhes destituir... Ser livre é se projetar num mundo que nos coloca um campo de possíveis... Ser livre é a única condição de nossa existência! A idéia burguesa de relação é aquela onde um dos pares sempre quererá impor sua razão. Esta prevalecerá e o outro não será menos sujeito desta escolha. Tanto o sadismo como o masoquismo, que implica as relações fracassadas na contemporaneidade, são elementos que nos ajudam a entender que sempre somos sujeitos, mesmo na não escolha! Queremos, em tese, uma relação onde nosso amor exerça seu livre direito de ser... mas nem isso suportamos!

Quanto tempo será necessário para que sejamos verdadeiramente autênticos uns com os outros? Não aprendemos senão, desde que nascemos, a estabelecer relações administrativas, vazias de alteridade e reciprocidade. Acreditamos ser possível viver amores fantásticos e na realidade nos deparamos com os amores reais, distantes daqueles que costumamos ver nos filmes e novelas. Fingimos que nada é conosco e nosso fracasso é singular ou fruto do destino. Jamais nos vimos como sujeito deste fracasso, jamais verificamos que criamos o clima para que as relações sejam fracassadas mesmo antes de começarem! Simone nos ensina que temos o direito de conquistar por si mesmo o sentido de nossas vidas.

Para isso, é preciso enfrentar não somente o clima antropológico pelo qual nosso sociológico se torna possível, como agir neste mundo e enfrentar as fortes contradições que insistem em nos reter!

Fabio Machado Pinto é professor do Centro de Educação da UFSC e doutorando na Université Paris 8. Atualmente ele é pesquisador do grupo ESCOL - Education e Scolarisation desta Universidade e participa ativamente dos grupos: Groupe d'études sartriennes / Paris e Nucleo CASTOR - Estudos e atividades em Existencialismo / Florianopolis / Brasil.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Simone de Beauvoir: 100 anos e muitas filhas

Não nasceu mulher, como costumava dizer. Mas bem que a sociedade quis e tentou. No entanto, Simone de Beauvoir inventou a si própria, escreveu sobre o sexo como ninguém, sobre o aborto, a violência, a política, a repressão sofrida pelas mulheres de seu tempo e sobre suas próprias experiências com um nível de exposição tremenda.


No dia 9 de janeiro ela faria 100 anos, e continua sendo uma forte influência para todos os movimentos feministas que ajudou a fundar nos anos 60 a partir de seu livro O segundo sexo, em 1949.

A história muitas vezes quis deixar a Beauvoir nas sombras de seu companheiro de vida, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Eles se conheceram em 1929 na Universidade da Sorbonne, Paris, nunca foram um casal convencional, realizaram inúmeros trabalhos no campo intelectual com forte compromisso político. “Se a mulher está despolitizada, despolitiza ao homem. Isso é importante, porque sempre a emancipação da mulher esteve unida à emancipação social. Quando nos Estados Unidos teve um grande movimento contra a segregação racial, no século 20, existiu ao mesmo tempo um grande movimento feminista.”

Formada em filosofia, abordou os dilemas existencialistas da liberdade, da ação e da responsabilidade individual em romances como O sangue dos outros (1944) e Os mandarins (1954), obra pela qual recebeu o Prêmio Gouncourt outorgado pela academia de letras francesa.

Suas autobiografias eram ensaios que questionavam seu tempo e a si mesma: “Para mim, escrever minhas memórias não era somente falar de mim, era falar a fundo de minha época. Me reprovaram ter passado tanto tempo escrevendo uma autobiografia, e me disseram que eu era uma narcisista ou bem uma egocêntrica. Penso que essa reprovação é falsa, porque se quis falar de mim mesma é para dar testemunho sobre minha época, sobre uma quantidade de coisas que vão mais além de mim.” Entre essas obras estão Memórias de uma moça bem-comportada (1958), A força das coisas (1963) e Tudo dito e feito (1972).

Será que algo mudou?

A realidade da mulher mudou pouco ou nada nas últimas décadas. O tráfico de adolescentes pobres forçadas a exercer a prostituição, a violência doméstica, a descriminação ou o acosso sexual em seus lugares de trabalho são algumas das tragédias que sofrem as mulheres atualmente.

O capitalismo submete em dose dupla: “Uma mulher que trabalhou oito horas em uma fábrica e volta para sua casa à noite, tem que ocupar-se das crianças, da casa, da cozinha e das compras, e têm que fazer durante quatro horas o trabalho da casa, ademais do trabalho profissional. É uma coisa agoniante que a leva a beira da depressão nervosa, e que lhe impede fazer com prazer nem um dos dois trabalhos, nem o da casa, nem o da fábrica ou escritório.”

Apesar das mulheres terem mais acesso a educação não significa menos submissão: “Como se trata de uma sociedade de consumo, se condiciona à mulher para que seja uma consumidora. E a consumidora ideal seria uma mulher instruída, que tenha sido preparada para estudar, para trabalhar, para ter uma carreira, e que logo se encontrou trancada na cozinha. Então, persuade-se a de que pode ser uma mulher criadora fazendo um bolo e lavando a roupa, e condiciona-se a para que compre mais e mais coisas.”

Uma foto, uma visão machista

No ano passado abri uma publicação e fiquei supresso ao ver uma foto. A imagem era de Ernesto Che Guevara ascendendo o charuto do Jean-Paul Sartre. Com toda a empolgação chamei minha mulher e disse em tom alegre: “olha só isso, os dois grandes”. Ao mostsrar a foto ela me retruca com voz enérgica: “Como que os dois grandes?”. De volta a imagem envergonhado e até irritado comigo mesmo comprovo que do lado, e não atrás, nem escondida, está sentada Simone de Beauvoir participando da cena em completo pé de igualdade. Minha mulher gosta de lembrar, em certos momentos, meu lapso naquela ocasião. Isso não aconteceu por casualidade, nem por distração. Por mais que em algum momento, nós homens, tenhamos questionado o machismo imperante e tenhamos consciência da perversidade do mesmo, o sistema não deixa de atuar sobre nós de diferentes formas, seja pela mídia ou através de nossas famílias que continuamente marcam o caminho e o lugar do homem e da mulher. Ser progressista no discurso quando a situação requer é fácil, mas realmente atuamos com nossas mulheres, mães, irmãs, tias e avós como pares? O machismo não está simplesmente nas grandes aberrações exercidas a elas ao longo da história, mas também está nas pequenas coisas do dia a dia.

Outra confissão. Sempre li livros e textos de Jean-Paul Sartre com os quais debatia com companheiros e colegas, mas nem um de Simone de Beauvoir; apesar de sempre ter reconhecido seu papel como intelectual.

Beauvoir nunca teve filhos, no entanto, sua luta e sua coerência geraram incontáveis filhas que continuam enfrentando as enormes desigualdades que estão longe do fim.

Por tudo isso, muitos homens deveriam sentir-se filhos dessa mãe libertadora e saber que sem a emancipação delas nunca existira a emancipação de todos.