quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Simone de Beauvoir: 100 anos e muitas filhas

Não nasceu mulher, como costumava dizer. Mas bem que a sociedade quis e tentou. No entanto, Simone de Beauvoir inventou a si própria, escreveu sobre o sexo como ninguém, sobre o aborto, a violência, a política, a repressão sofrida pelas mulheres de seu tempo e sobre suas próprias experiências com um nível de exposição tremenda.


No dia 9 de janeiro ela faria 100 anos, e continua sendo uma forte influência para todos os movimentos feministas que ajudou a fundar nos anos 60 a partir de seu livro O segundo sexo, em 1949.

A história muitas vezes quis deixar a Beauvoir nas sombras de seu companheiro de vida, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Eles se conheceram em 1929 na Universidade da Sorbonne, Paris, nunca foram um casal convencional, realizaram inúmeros trabalhos no campo intelectual com forte compromisso político. “Se a mulher está despolitizada, despolitiza ao homem. Isso é importante, porque sempre a emancipação da mulher esteve unida à emancipação social. Quando nos Estados Unidos teve um grande movimento contra a segregação racial, no século 20, existiu ao mesmo tempo um grande movimento feminista.”

Formada em filosofia, abordou os dilemas existencialistas da liberdade, da ação e da responsabilidade individual em romances como O sangue dos outros (1944) e Os mandarins (1954), obra pela qual recebeu o Prêmio Gouncourt outorgado pela academia de letras francesa.

Suas autobiografias eram ensaios que questionavam seu tempo e a si mesma: “Para mim, escrever minhas memórias não era somente falar de mim, era falar a fundo de minha época. Me reprovaram ter passado tanto tempo escrevendo uma autobiografia, e me disseram que eu era uma narcisista ou bem uma egocêntrica. Penso que essa reprovação é falsa, porque se quis falar de mim mesma é para dar testemunho sobre minha época, sobre uma quantidade de coisas que vão mais além de mim.” Entre essas obras estão Memórias de uma moça bem-comportada (1958), A força das coisas (1963) e Tudo dito e feito (1972).

Será que algo mudou?

A realidade da mulher mudou pouco ou nada nas últimas décadas. O tráfico de adolescentes pobres forçadas a exercer a prostituição, a violência doméstica, a descriminação ou o acosso sexual em seus lugares de trabalho são algumas das tragédias que sofrem as mulheres atualmente.

O capitalismo submete em dose dupla: “Uma mulher que trabalhou oito horas em uma fábrica e volta para sua casa à noite, tem que ocupar-se das crianças, da casa, da cozinha e das compras, e têm que fazer durante quatro horas o trabalho da casa, ademais do trabalho profissional. É uma coisa agoniante que a leva a beira da depressão nervosa, e que lhe impede fazer com prazer nem um dos dois trabalhos, nem o da casa, nem o da fábrica ou escritório.”

Apesar das mulheres terem mais acesso a educação não significa menos submissão: “Como se trata de uma sociedade de consumo, se condiciona à mulher para que seja uma consumidora. E a consumidora ideal seria uma mulher instruída, que tenha sido preparada para estudar, para trabalhar, para ter uma carreira, e que logo se encontrou trancada na cozinha. Então, persuade-se a de que pode ser uma mulher criadora fazendo um bolo e lavando a roupa, e condiciona-se a para que compre mais e mais coisas.”

Uma foto, uma visão machista

No ano passado abri uma publicação e fiquei supresso ao ver uma foto. A imagem era de Ernesto Che Guevara ascendendo o charuto do Jean-Paul Sartre. Com toda a empolgação chamei minha mulher e disse em tom alegre: “olha só isso, os dois grandes”. Ao mostsrar a foto ela me retruca com voz enérgica: “Como que os dois grandes?”. De volta a imagem envergonhado e até irritado comigo mesmo comprovo que do lado, e não atrás, nem escondida, está sentada Simone de Beauvoir participando da cena em completo pé de igualdade. Minha mulher gosta de lembrar, em certos momentos, meu lapso naquela ocasião. Isso não aconteceu por casualidade, nem por distração. Por mais que em algum momento, nós homens, tenhamos questionado o machismo imperante e tenhamos consciência da perversidade do mesmo, o sistema não deixa de atuar sobre nós de diferentes formas, seja pela mídia ou através de nossas famílias que continuamente marcam o caminho e o lugar do homem e da mulher. Ser progressista no discurso quando a situação requer é fácil, mas realmente atuamos com nossas mulheres, mães, irmãs, tias e avós como pares? O machismo não está simplesmente nas grandes aberrações exercidas a elas ao longo da história, mas também está nas pequenas coisas do dia a dia.

Outra confissão. Sempre li livros e textos de Jean-Paul Sartre com os quais debatia com companheiros e colegas, mas nem um de Simone de Beauvoir; apesar de sempre ter reconhecido seu papel como intelectual.

Beauvoir nunca teve filhos, no entanto, sua luta e sua coerência geraram incontáveis filhas que continuam enfrentando as enormes desigualdades que estão longe do fim.

Por tudo isso, muitos homens deveriam sentir-se filhos dessa mãe libertadora e saber que sem a emancipação delas nunca existira a emancipação de todos.

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